Dê poder às pessoas e o resultado aparece
Fonte: Valor Econômico (01 de outubro de 2020)
Ninguém gosta de ser chamado de capital humano. Profissionais querem ser tratados como adultos e não como instrumentos para produzir resultados. No entanto, somos subestimados por um sistema organizacional burocrático, que maximiza a conformidade e privilegia o controle. Muita energia é desperdiçada em um jogo hierárquico. Empresas inovadoras e bem sucedidas souberam subverter essas relações de poder dando autonomia, acreditando na sabedoria coletiva, dividindo a responsabilidade pelo lucro e pelo crescimento individual. Criaram um novo modelo de gestão, baseado na “humanocracia”.
Essa é a tese defendida pelo professor Gary Hamel em seu novo livro “Humanocracy”, onde depois de sete anos de pesquisa, destrincha o modelo de gestão e a estratégia de diversas empresas nas quais não há chefe, as equipes são autogeridas e o lucro aparece. Fundador da consultoria Strategos e há 30 anos à frente do laboratório de inovação da London Business School, Hamel figura na lista dos maiores influenciadores do mundo da gestão há muitos anos. O “Financial Times” se refere a ele como o grande pensador da inovação no mundo. Seu livro “Competindo pelo Futuro”, com CK Prahalad, e “Liderando a Revolução”, foram leitura de cabeceira de muitos CEOs e traduzidos para 24 idiomas. Em entrevista ao Valor, de uma casa nas montanhas no Colorado, diz que a pandemia pode ter forçado a derrubada de barreiras hierárquicas nas organizações, mas que esse efeito deve ser passageiro. “A burocracia tem um poder inacreditável de autoregeneração”. A seguir os principais trechos da entrevista:
Valor: Quais as principais diferenças entre as organizações “burocratizadas” e as “humanizadas”?
Gary Hamel: No modelo burocrático, vemos os seres humanos como recursos. O indivíduo é um instrumento, algo que a organização usa para produzir algum tipo de resultado final. É capital humano. Mas quando as pessoas sentem que são instrumentos, elas não dão o melhor de si. Na “humanocracia”, como chamamos no livro, os indivíduos ingressam em organizações porque reconhecem que precisam trabalhar com os outros para fazer coisas que não podem executar sozinhos, porque isso permite ampliar o impacto que poderiam causar no mundo. A empresa também ajuda a ganhar a vida. Nesse modelo, a instituição é o instrumento, não o ser humano. A burocracia usa um sistema de gestão projetado para maximizar a conformidade, privilegiando o controle acima das outras capacidades e metas organizacionais. A “humanocracia” reconhece que um certo grau de controle é necessário, mas sua ênfase é em como você libera a iniciativa, a engenhosidade e a paixão de todos no trabalho. Depois, você pode se concentrar no que fará a diferença no mundo.
“O papel do CEO é o de um capitalista de risco que busca ideias, cultiva, financia e garante que tenham sucesso”
Que tipo de limites estruturais existem no modelo organizacional não-burocrático?
Em nosso livro, escrevemos sobre o maior provedor de saúde domiciliar da Holanda, chamado Buurtzorg. São 16 mil enfermeiras e cuidadores, todos organizados em pequenas equipes autogeridas, com uma dúzia de pessoas. Em cada equipe, eles dividiram as funções gerenciais: há alguém responsável pelas questões financeiras, outro por recrutar talento e uma pessoa para atividades comerciais. Cada equipe é responsável por encontrar clientes, espaço de escritório e é avaliada por um conjunto de métricas de desempenho, satisfação do paciente e número de horas usadas por cada enfermeiro. Essas métricas são visíveis para toda a rede por meio de uma plataforma. Eu não preciso depender de ir ao meu chefe para ele dizer a coisa certa a fazer. Se eu tiver um problema com um paciente posso enviar uma pergunta a milhares de colegas e receberei a melhor resposta. Tudo é arquivado, assim cada equipe pode acessar o conhecimento coletivo da organização. As práticas recomendadas se propagam rapidamente. Existe um poderoso incentivo para melhorar o desempenho e assim todo o sistema está constantemente subindo de nível.
Qual é o papel da meritocracia em uma organização não burocrática?
Eu defendo que a burocracia é um jogo multiplayer massivo pela promoção. Esses torneios não valem nada, porque há um vencedor e muitos perdedores. Você sabe que para vencer naquele ambiente precisa aprender a acumular recursos, defender o território, negociar alvos, afastar concorrentes e rivais, massagear o ego do seu chefe, desviar a culpa e exagerar as próprias competências. Uma quantidade enorme de energia na organização é direcionada para essas batalhas burocráticas. Você pode ter uma hierarquia que se baseia no poder da posição, que tende à tirania, ou pode ter uma hierarquia que se baseia na competência individual. Uma fabricante de eletrodomésticos chinesa que estudamos reduziu a organização de oito para três camadas de decisão, estabelecendo 4 mil pequenas unidades. Todas com metas muito ambiciosas. A única maneira de você sair à frente nessa organização é fazendo coisas incríveis para o cliente. Não há jogo para subir na hierarquia, virar gerente de departamento ou vice-presidente.
Como se promove o engajamento nessas organizações?
A W.L. Gore & Associados, empresa conhecida pela marca Gore-tex, de tecidos de alta performance, que emprega 9 mil pessoas em 50 locais do mundo, é uma organização extremamente plana. As equipes escolhem seus próprios líderes se não acharem que estão fazendo um bom trabalho. Cada funcionário tem ações da empresa, então todos querem que ela tenha um desempenho melhor e escolherão líderes que os pressionem e não que os trate com brandura porque desejam ter sucesso. No final do ano, sou solicitado a nomear algumas pessoas que conheçam bem o meu trabalho, o que fiz no ano e o valor que criei. Não é um chefe, mas esse grupo de pares que vão te avaliar. Você é solicitado a fazer comparações entre pares também. Então, eles pegam todas essas classificações, assim sabem quem são as pessoas cujos pares e colegas acreditam que agregam mais valor, e você saberá exatamente onde está classificado na equipe e na companhia. Nessas organizações muito horizontais, onde não há cargos formais, ano após ano, algumas pessoas criam mais valor do que outras e todos sabem quem são. E elas são muito bem pagas. Em uma organização não hierárquica em vez de dizer: “agora sou um VP”, o que posso dizer é que estou entre os 10% com desempenho superior pela avaliação dos colegas. Você não consegue ser um líder simplesmente por um título.
“Se você não treinar as pessoas para pensar nos negócios, der autonomia, elas vão se comportar como robôs”
Qual é o papel do CEO nessas organizações?
O CEO não é o principal tomador de decisões, o visionário ou o estrategista-chefe. O mundo hoje é complexo e se move tão rápido que nenhum pequeno grupo no topo tem amplitude de visão, imaginação e sabedoria para criar estratégia. Você precisa de muita experimentação, ver o que funciona, daí coloca energia, apoia e obtém mais recursos. Eu diria que é quase uma combinação de alguém como John Doerr, celebrado capitalista de risco, que está constantemente em busca de oportunidades, encontrando talentos, apoiando pessoas e Jimmy Wales, o fundador da Wikipedia, que procura criar um ambiente que motiva a contribuição de outras pessoas. Ele é o que eu chamaria de um arquiteto social. Temos que superar esse mito perigoso de que, de alguma forma, o CEO é mais inteligente que todos. Existem dois tipos de liderança que acabam sendo mais celebrados. Os empreendedores que constroem novas lojas como Jeff Bezos, que não criam um grande modelo de negócios, mas, em última análise, criam um ótimo modelo de gestão, altamente experimental e dinâmico. E um segundo tipo de CEO que faz um “turnaround”, como Satya Nadella, da Microsoft. A empresa perdeu quase todas as oportunidades de computação por 20 anos. Então ele surge. Não é que ele seja tão inteligente, porque na verdade existe um manual para fazer um “turnaround”: livre-se da velha liderança, promova muitos jovens e comece a ouvir seus clientes de novo. Não acho que alguém deveria receber um grande prêmio por transformar uma empresa. O que importa são os líderes que constroem um novo modelo de negócios, uma cultura, valores e sistemas que sustentam no longo prazo. O número de líderes que fizeram isso é muito, muito pequeno.
Com a pandemia e o home office, muitos gestores foram obrigados a dar mais autonomia. Isso pode ajudar as organizações a repensar seus processos de poder?
Um líder da área de saúde na Itália me disse “o coronavírus se move mais rápido do que a nossa burocracia”. Eu acho que no curto prazo em uma crise, quando o centro de decisão está sobrecarregado, a autoridade se move para a periferia, mas isso também acontece porque as pessoas começam a se conectar de novas maneiras. Em uma crise, você vê o surgimento dessas redes horizontais de aprendizagem. Enfermeiros, cuidadores, estão on-line todos os dias aprendendo uns com os outros, olhando artigos científicos, tentando descobrir o que é melhor fazer, experimentando novos protocolos. Mas aqui está o dilema, à medida que a crise diminui, as pessoas no topo reafirmam sua autoridade. Se você olhar para o crescimento da classe burocrática nos Estados Unidos, nos últimos 40 anos, ela cresceu duas vezes mais rápido que o emprego em geral. Em 2009 tivemos uma pequena queda na burocracia depois da crise financeira. Organizações tiraram camadas, demitiram alguns gerentes, mas em dois anos, elas estavam de volta à mesma forma, como se a crise nunca tivesse acontecido. Não acho que o coronavírus vá desmantelar a burocracia, que tem poderes inacreditáveis de autorregeneração, mas vai dar aos líderes um empurrão.
Como você capacita as pessoas para exercerem a autonomia nesse modelo organizacional?
As estruturas burocráticas infantilizam os funcionários. Você os trata como se fossem crianças, com todos os tipos de regras e supervisão. Esse é um legado da era industrial. É preciso dar às pessoas habilidades de negócios. Precisamos dividir grandes unidades organizacionais em unidades menores. O que aprendemos é que, na maioria dos países, menos de 5% dos funcionários da linha de frente têm um bônus vinculado à lucratividade. Isso é uma loucura pois estamos em um sistema capitalista. Eu acho que muitas vezes culpamos o capitalismo pela má implementação do capitalismo.
Em qual sentido?
Você não pode culpar o capitalismo se seus políticos estão sob o controle das grandes corporações. Isso é culpa de um sistema político ruim. Você não pode culpar o capitalismo se as empresas destroem o meio ambiente. Isso vem da falta de uma boa regulamentação e responsabilidade. Você não pode culpar o capitalismo se os investidores olham o curto prazo. As grandes organizações internamente ainda operam como a antiga União Soviética. As empresas sobre as quais escrevemos no livro ensinam os funcionários a pensar como pessoas de negócios. Dados globais mostram que apenas 17% dos funcionários no mundo estão engajados. Bem, isso é porque ainda os tratamos como robôs, embora agora tenhamos robôs de verdade. Você descobre que apenas um em cada cinco funcionários acredita que suas opiniões são importantes. Por que eu iria me preocupar em pensar no trabalho? Um em cada dez acredita que tem liberdade para experimentar novas soluções. Portanto, não vou ser inovador. O que está acontecendo é que estamos desperdiçando uma grande quantidade da capacidade humana. Não existem empregos de baixa qualificação, mas apenas os que oferecem poucas oportunidades de aprender. Há muitos com poucas oportunidades para a pessoa aprender, crescer, resolver problemas e prosperar, onde são tratadas como robôs.